domingo, 22 de junho de 2014

Possessão



Ali estás, parada, distraída. Meu olhar te analisa da cabeça aos pés, mas anseia por um contato visual para dissecar tua alma. E a assim acontece, ao encontro dos meus tu sentes como se estiveste nua. De alguma forma sabes que de mim não escapa nada. Agora a presa tem total noção da perseguição, tal como antílope ao encontrar felinos olhos em meio ao mato seco. Entretanto não corres, se mantém no lugar, congelada; ainda pensando sobre como reagir a tamanha sensação de ser observada. Teu corpo já reage te preparando para ser dominada, sequer pensas em fugir. Não é bem do teu instinto. Ao contrário, escolhe o local do abate, e viras o jogo ao deixar escapar um sutil sorriso no canto da boca, vira de costas e segues andando até um beco escuro. Sabendo que, como uma sombra, estou em teu encalço.

Lá nos encontramos, onde sequer a tênue luz da lua ousa tocar, encarando-nos esperando pelo clímax da caça. Dou alguns passos e retomo o comando. Dedos te ordenam que se aproxime, com um movimento suave, seguido de um comando direto apontando o local a minha frente. Então te vejo caminhar, oscilando suaves movimentos com os quadris a cada passo. Teus olhos de piedade não parecem querer liberdade, já buscas entregar-me toda de uma vez. Ao se aproximar tanto de mim, tu percebes o que antes não vias, chifres curvos por entre os cabelos penteados para trás, assim como dentes um tanto mais pontudos que o normal em meu sorriso que sustenta um cigarro aceso. Agora encontra-te a distância de um sopro, sentindo o cheiro da fumaça que exala de minha boca. Jogo fora o cigarro e toco suavemente teus cabelos longos com meus dedos passando próximos a teu suave rosto. Instintivamente fechas os olhos. Levanto teu queixo com o nó de meu dedo e peço para que abras a boca. Me obedeces como se já houvesse sido previamente treinada. Espera por um presente ou uma confirmação de tua invocação. Me trouxeras pois querias algo. Mulher tão pura e de família cristã, mas cheia de pecado que atraem qualquer demônio. Cuspo em sua boca, e empurro suavemente teu queixo para que feche a boca. Você engole.

O pacto está feito, e agora restaste apenas a ti, sozinha entregue de joelhos com as mãos entre as pernas. Delirando perante a imagem da próxima visita, estás condenada ao que querias, porém não se arrepende.
Havia se entregado há muito tempo atrás.

domingo, 15 de junho de 2014

Trilhos

É impossível transmitir
a poesia que percebo
com o meu olhar
Ainda assim insisto
Para outros olhos
me expressar

Nada significam senão
para quem quer ver
Dentre tantas janelas
para admirar,
poderias a minha escolher

Acreditar talvez em minhas
verdades não ditas?
...

Nem és tu
Na verdade sois vós
É voz

Silenciada e discreta
Ternamente não proferida
E vos não entendo
Também não me ouvistes
Olhares se alinham
uma vez mais
Para se perder sem sentido

Alguma coisa aconteceu
Não será sabido
Alma alguma viu

Morreu no momento
em que o trem
partiu

 
Foto do acidente de trem em Nidareid, 1921

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Doce Quimera

The invisible woman (1940)


Sonhei novamente contigo
É... tu... que não existes
Trocando de face a cada encontro
Plantando distorcidas esperanças
Já deveria estar acostumado
Com teu jogo envolvente
Mas sempre crias regras novas

Menina dos olhos, cansados
Sonolento desejo de repouso
Daquilo que não encontra descanso
Nebulosa de expectativas inalcançáveis
Tua doce presença é irreal
Tuas visitas passageiras
Deixando um sabor solitário na boca

Você que veio me visitar
É... tu... que não existes
Não possui face, não possui forma
Com nomes dos quais nunca ouvi
Ao acordar já esqueci
Só me sobra cogitar
Se estava ali, se estavas aqui

Se estivesse pelo menos por aí