terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Sardas


Algo se perdeu no cheiro daquele abraço
Nos deixando sem graça naquele embaraço
Um pedaço da realidade, feito de imaginação
Uma porção de sonho vazando do coração

Falar pode criar cenas verdadeiras das mais belas
Algo em tua profunda iris me liberta de minhas celas
Mas creio que o segredo do amor está no tocar
Teu corpo em contato com o meu nos faz harmonizar

Vejo uma miríade de cores invisíveis em tuas pupilas
Então por um breve instante meus temores aniquilas
E cá estamos no silêncio infinito de um breve olhar
Para ao fim do contato minha nobre ilusão desfolhar

Irradia teu sorriso meigo, tão neutro que se faz malévolo
Somos tão insignificantemente diferentes no frívolo
E tão significantemente semelhantes no importante
Ainda assim o que nos aproxima te torna mais distante

Desperto lentamente de mais uma hipnose onírica
Voltando a realidade que nunca fora minimamente lírica
Sonhada por um coração quase sempre confuso
Me faço consciente novamente de meu ser obtuso

Quem sabe um dia não me procure
Então de antigas feridas eu me cure
Enquanto procuro avidamente me encontrar
Me perdendo nos teus mistérios a desvendar
   

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Y



Me encontro sentado, com as costas arqueadas feito um idoso,
Debruçado sobre os joelhos respirando ofegante e desgostoso
Em minhas mãos uma memória e um instrumento de violência.
Manchando os poemas aos meus pés escorre a sua essência

Cartas e mais cartas espalhadas pelo chão, amassadas
Cartas estas seladas, nunca lidas, jamais enviadas

Nem pareço ter a idade que tenho, carrego o peso de cem anos
Já você, leve como uma vespa continua astuta e jovial
Deixando um rastro de destruição e ignorando os danos
Devorando inocentes corações, como um voraz canibal

"Vê se vira homem!"

Ainda lembro de suas últimas palavras amargas e cruéis
Impensadas feito o rubro sangue que sujam estes papéis
Dia após dia tentei compreendê-las, isso eu te juro
Enquanto navegava num barco à deriva sem porto seguro

Não houve rum que me fizera afogar o seu ódio insolente
Não houve aguardente que mantivesse quente meu coração doente

Essa frase abalou minhas estruturas feito explosão de dinamite
Tais palavras me remontam à lembranças em que fui desafiado
Me foi passada a ideia de que homens ultrapassam o limite
Em todas as vezes nunca entendi plenamente o significado

"Você não é homem!"

Muitas vezes foi esperado de mim atitudes negativas
Um macho alfa coleciona histórias de iniciativas
Em brigas e confrontos queriam ver agressividade
Até mesmo fazer o mal, jamais aceitando a passividade

O homem traz o fardo e o privilégio de ser o grande conquistador
Ter menos pudor, é o desbravador, tem de ser dominador

E logo você não esperava menos que toda essa premissa
Meu maior erro foi tratá-la com todo respeito como uma igual
Trazia consigo um forte desejo de ser domada e feita submissa
Apesar de tudo em você era forte esse instinto animal

"Você nunca vai ser homem"

E então o fatídico dia, te encontro em casa sozinha
Não faço cerimonia, entro sem pedir ao menos licença
Você surpresa me insulta e diz que não mais a tinha
Mas a sua cultura me ensinou a não tolerar tamanha ofensa

Queria ciumes e ser usada, deixo ao lado uma câmera e pego a cinta
Você queria isso, não minta, apenas sinta, quase implorou faminta

Você tenta lutar, mas sempre reclamou de eu ser mais forte
Talvez nesse papel de homem eu me encaixe, veja que sorte
Você queria ter fotos sensuais, com o perigo de cair na rede
Não se preocupe com vergonha, trouxe vinho pra saciar sua sede

"Você é um monstro!"

Talvez então finalmente tenha entendido o que é ser homem
Nessa sociedade machista, tem que ser covarde e botar medo
No abate há quem mate a carne que os outros comem
Com a faca em punho, esta noite serei o açougueiro neste enredo

Recito Bukowski enquanto em desespero se encolhe no canto
Me comove seu pranto, com uma foto me espanto, e eu sinto tanto

Jamais aceitaria me tornar isto, que admira e te apavora
Então em um corte profundo pus minhas tripas fora
Me sentindo honrado por não me deixar cegar pela amargura
Você se afasta o máximo que pode, como eu deveria ter deixado, antes desta loucura

"Eu te odeio!"

Isso me tranquiliza, ainda sente algo afinal,
Perdi total controle de tudo que carrego comigo
Fiz das tripas coração, para não te fazer mal
No fim sempre tivemos em comum o inimigo

Só agora reparo nas cartas que joguei ao chão
Não fui são, sem qualquer razão, foi tudo em vão

Em meio a tantos erros e arrependimentos insanos
No fim entre razão e sentimento, somos nada além de humanos
Mesmo sabendo que não fiz escolha alguma certa
Ainda me preocupo...

"...Você deixou a porta aberta"
   

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Flagelo das sombas

Moon - Tomohide Ikeya


Sofro de um mal sem cura
Não tem médico que diagnostique
Não há curandeiro que resolva
Nem santo que expurgue com milagre

Já tentei toda sorte de alopatas
Inexiste terapia que descomplique
Me afogando em doses homeopáticas
Procurei em mim o antídoto do veneno

Quanto mais vasculho, mais intoxicado fico
Não sou o primeiro a sofrer por isso
Nem mesmo o último por isso morrer
Estou infectado com o parasita sem nome

Sutil como uma poderosa bactéria
Resistente como um vírus ou uma ideia
Se alastra por todos meus nervos
Envolvendo meu coração e cérebro

Droga potencializada por emoções
Emoções alimentadas por memórias
Memórias sustentadas pelo futuro
Futuro faminto por perspectivas

Não fora sexualmente transmitida
Tampouco adquirida pelo ambiente
Há muito tempo em minha alma plantada
Cresce forte com o tempo, paciente

Tempo este, cruel e traidor
Relativo quando lhe interessa
Absoluto para despertar pavor
Brincando com sua foice sem pressa

No terreno já seco e desabitado
A praga se desenvolve livre
O arado se encontra abandonado
A terra aos poucos não é mais fértil

Sua poda está atrasada
As raízes já se fazem profundas
Finos ramos pretos se espalham feito veias
Grossos fios negros de cabelos enrolados

Ao horizonte apenas a tempestade redentora
Rego o silvado com a cinza água pútrida
É o que posso juntar da sujeira do céu
E das profundeza líquida das pedras

Em meio a escuridão então percebo
Há todo um novo habitat obscuro
Que ainda assim se faz fluído
Soturno, porém vívido e belo

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Amnésia



Não me lembro de mais nada.

Te esqueci completamente.

Não lembro mais das tuas qualidades, tampouco lembro dos seus defeitos. Não lembro daquilo que te irritava, sequer lembro do que gostava. Não lembro como se comportava, nem da forma como pensava. Não lembro mais das cores de esmalte que mais gostava, das roupas que mais usava ou do chinelo que adorava. Não lembro do que odiava em si mesma, ou como tua aparência, apesar de te incomodar, me fascinava. Não lembro das tuas inseguranças, nem da tua timidez, tampouco da tua risada.

Esqueci do calor do seu corpo e de tuas bochechas coradas.

Não lembro da música que te fazia sorrir, nem da série que acompanhava. Não lembro do seu animal de pelúcia favorito, não lembrou do seu autor predileto ou do filme que amava. Não faço mais ideia de qual chá que gostava, ou que receita fazia bem na cozinha. Não lembro a forma como me olhava, nem seu peso sobre meu peito. Não lembro da tua voz, tampouco da forma do seu sorriso. Não lembro como teu animal de estiação te alegrava, não lembro do seu jeito criança nem da tua forma de ser desajeitada.

Esqueci do seu cheiro e esqueci do seu sabor.

Não lembro mais dos nossos momentos, sequer quanto te amava. Não me lembro dos presentes que me dera, nem das carícias com as quais me agraciava. Não lembro dos meus erros, muito menos de minhas promessas abandonadas. Não lembro do seu corpo, não lembro do seu toque, não lembro do seu sexo, muito menos se era por mim apaixonada. Não lembro das tuas cicatrizes do passado, tampouco das tuas histórias e mágoas. Não lembro do seu quarto, da cor do seu lençol ou como tuas roupas ficavam dobradas.

Esqueci do seu abraço e esqueci do toque de seus lábios.

Não lembro mais de seus segredos, nem de tuas decepções ou amores anteriores. Não lembro como me preocupava, do quanto me desculpava ou das coisas que dizia. Não me lembro do quanto achava que éramos perfeitos um para o outro, sequer em como não aguentei a pressão e estraguei tudo. Não lembro dos meus temores, das tuas angústias nem de nossas discussões. Não lembro do quanto te decepcionei ou dos insultos que recebi. Não lembro do quanto sofri, tampouco do quanto te fiz sofrer.

Esqueci de meus atos imaturos e de tuas infantilidades.

Não lembro.

...

Confuso em meio a fragmentos desconexos de memórias que nunca me deixaram. Me sinto perdido e sem mapa ou bússola para me direcionar. Tropeço em sensações que nem sei de onde vieram, emoções que brotam do solo sem sentido aparente. Sigo vagando sem rumo, morando em mim mesmo sem endereço.
Procurando algo que um dia foi você, o esquecimento me livra da falsa presença, mas me mantém lembrando da ausência sem falta.

Mas esqueço, esqueço e re-esqueço.

Esse esquecimento que me afeta... e eu nem lembro o porquê.

Não lembro nem que é por você.

  

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Persinette



Jogando para o lado começo a terapia de desapego
O corte é corajoso, apesar de tímido para o que desejo
Começo cortando as laterais, tirando aos poucos
Abro mão da completude da forma por igual
Deixo um respiro para aliviar com o vento fresco
E já me esqueço dos fios soltos que caem ao chão
Memórias distantes as quais não quero mais

Quantos anos não viram as pontas de meu cabelo?
Acompanharam uma longa parte de minha vida
Hoje tão compridos se tornam um grande peso
E tu, que o admiraste como se aceitasse a meu passado
Com seus dedos a alisar com admiração a minha história
Sem se importar com as pontas duplas ou falta de brilho
Dissera que o queria tão longo quanto nosso amor

Mantenho o corte por um tempo, mas não basta
Ainda me sobre muito de você em cada fio
Afronto seu amor por meus longos cachos
Corto a identidade do que um dia eu fora, para você
Suavemente me liberto das milhares de finas correntes
Desprendo-me da ideia de que um dia gostaste de mim
Rompo os vínculos com decorrido destino

Sem arrependimentos posso sentir de volta
A leveza do mundo esquecer e pelo mundo ser esquecida
Me desfazendo em sutis linhas negras em tênue queda
Posso sentir melhor o vento, e respirar mais tranquila
Por muito tempo engoli suas desculpas cabeludas
De fio em fio eu formei um bezoar que descreve nosso amor
Um emaranhado de desentendimentos internalizados a incomodar

Mas não mais, se foi ao vento e até mesmo o chão já se faz limpo
Mas nem se crescesse de novo, tudo estará renovado
Não há mais pontas soltas nessa história
Nem longos fios enosados
Não há mais você
Nem nós
Jamais

domingo, 8 de dezembro de 2013

Zero



No escuro abissal do éter espacial uma figura dantesca de proporções titânicas queimava feito uma estrela demoníaca.

Para meu total terror, preso naquele breu infinito sem conseguir sair do lugar, pude perceber que a odiosa presença possuía o que pareciam ser olhos; apesar de a sensação que tive é de que eram cavidades ocas. Seus olhos de buracos-negros transmitiam uma perversidade tétrica e o descomunal corpo celeste me fitava concentrado, o que gerou em meu âmago o maior dos horrores que um ser humano é capaz de sentir.
Girando em movimento perpétuo, lento e contínuo, esperava pela morte enquanto o temível astro mantinha as cavidades oculares obscuras em minha direção, e uma certeza crescia cada vez mais: de que estava a me encarar. Se fazia presente uma sensação de aproximamento sutil, quase impossível de notar.

Levaria uma vida inteira até que tal profana existência me puxasse com sua inexorável gravidade, o que demonstrava o quão longe encontrava-me do maligno titã espacial. Ainda assim seria uma questão de tempo até que fosse devorado por suas chamas negro-púrpuras oscilantes, formadas por fusões nucleares incessantes. Tal ser emanava toda sorte de sentimentos e sensações negativas, como um orbe formado de todo o mal universal concentrado em um único ponto blasfemo.
Sou incapaz de quantificar a quanto tempo me encontro perdido em meio ao vácuo, e sequer lembro como aqui vim parar. Poderiam ser anos, décadas, séculos, eras, éons; não consigo definir. Talvez a massa do objeto possua propriedades que o façam distorcer mais o tempo do que o espaço, senão já teria sido puxado feito um marinheiro preso a uma âncora em direção as profundezas do mar.

É possível que seja tudo um sonho, só isso explicaria. Esse era meu norte na tentativa de me manter são, enquanto as estrelas mantinham seu movimento constante na abóboda giratória. Por vezes tinha a sensação de estar parado e o universo que na verdade se mantinha em movimento a minha volta.
O frio sideral despertou ideias jamais desejadas antes, subitamente me peguei a pensar que não seria de todo mal ser engolido por tal ente herege. Ao olhar diretamente em seus ímpios olhos vazios me senti desfazer em camadas. Traje, pele, carne, ossos e alma separados pela velocidade do movimento no qual me encontrava em direção ao globo em brasa. Em resposta aos meus pensamentos, anunciando sua consciência viva, a entidade passou a exercer uma força misteriosa de atração sobre meu corpo, de tal forma que pude sentir algo como vento, mesmo não existindo ar a minha volta.

Ao me aproximar do centro da esfera sobrenatural, me senti desfazer, enquanto minha mente explodia em uma epifania de pseudo-memórias de outras vidas e existências, se mesclando e montando uma espécie de quebra-cabeças feito de fotos. Para então todas serem queimadas por um fogo negro que aliviou meus pensamentos, limpou minha memória, desfez minhas ideias, desfragmentou minha personalidade e anulou minha existência...

domingo, 24 de novembro de 2013

Armadura



Passos vagarosos são ouvidos ao longe, abafado pelo farfalhar das folhas ao vento apressado. Está um contrastante clima quente de brisa gélida e em toda a volta enxerga-se apenas a maciez pálida de uma densa névoa, da qual não se pode enxergar sequer o céu, tornando impossível distinguir dia de noite. Apenas se faz possível sentir o chão ou vê-lo chegando bem perto, dissipando a opressora neblina. Toda a noção de espaço e tempo se distorce no meio da paradoxal escura claridão; tudo é branco, em tantas camadas que se torna um gradiente de cinza.
Determinado, segue a procura de algo, passos firmes tateiam à espera de que o chão não lhe suma sob os pés. Ao encontrar um marcação, em forma de cicatriz na terra seca, se prepara para escavar o local demarcado. A procura se torna árdua enquanto segue perfurando o solo com um profundo buraco, por onde a névoa escoa feito um líquido fantasmagórico.
As retiradas de terra cessam ao sentir um objeto sólido ressoando com o impacto. Uma pedra negra e opaca, o universo aprisionado em um diamante, que logo é retirado e trazido à superfície. Não era exatamente o que esperava, mas o surpreende no que se tornara aquilo que um dia vira afundar.
Por mais inflexível que pareça, o artefato pode converter-se maleável em altas temperaturas.
O som de uma abertura metálica e pesada lentamente sendo aberta soa pelo ambiente, e do buraco proveniente de seu peito jorra lava que escoa para o buraco a pouco escavado. A forma bruta de carbono é então mergulhada no fogo líquido que a faz ficar flexível, emanando um fogo púrpura que ilumina o vapor a sua volta. Como barro flamejante é manuseada e trabalhada por mãos calejadas, que não se importam com sua temperatura abrasante. O esforçoso trabalho artesanal se da entre pancadas e compressões, dobras e apertos exaustivos até que aos poucos se tornem formas anatômicas grosseiras. A água que lhe escorre pelo corpo devido ao esforço resfriam os luminescentes objetos formados a partir da peça original, engrossando ainda mais o nevoeiro. Com extremo cansaço e muitas queimaduras o artífice se deita ao lado de sua obra e descansa por incontáveis e imperceptíveis seis dias e seis noites.
Com a ferida da terra já cicatrizada e o tempo limpo, no qual agora se faz possível enxergar as estrelas, levanta-se para observar o arredor. Nada reconhece, mas não sabe se andara muito, ou se sua memória que já não é mais a mesma. É possível enxergar centenas de marcas e feridas, e uma abertura no peito que agora jaz vazia e profundamente escura.
De forma ritualística prossegue encaixando as peças do exoesqueleto moldadas para encaixar em seu corpo cansado. O traje lhe cai como uma luva, se adaptando como uma segunda pele e uma peça sobressalente se faz adequada; uma lâmina obscura sendo embainhada encerra a ritualística. Aos poucos se da conta de que o tempo está fechando, e ao reparar na luminosidade da lua observa não mais possuir uma sombra. Infla os pulmões professando os seguintes versos:

"Visto de volta o bom e velho pessimismo otimista
Onde espero de cada circunstância sempre o pior
Sem temer a má sorte do futuro desconhecido
Sendo assim por vezes surpreendido positivamente

Faço de minha densa sombra minha arma e armadura
Forjada no ardor de minhas dolorosas emoções vividas
Resfriada em meus obscuros prantos e odiosos pesares
Feita à minha imagem e semelhança, meu complemento

Que todo o meu passado, seja glorioso ou vergonhoso
Nenhuma vez seja negado, ou por mim desmerecido
Que as batalhas vindouras não sejam jamais temidas
Oh! Luminosa lua espectral que me observa dos céus

Não possuo mais treva, tão pouco sou cheio de luz
Me faço humanamente cinza, puramente indecifrável"


terça-feira, 19 de novembro de 2013

Julgamento





"Tolo aquele que julga
Quer por ponto final
Onde não conhece
sequer uma vírgula
Prefiro ser reticente"

Ideias do Último Atlante

     

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Vate

Günter Brus - self - mutilation

Nunca confie nas palavras de um poeta

Não o permita divagar, mantenha a réplica direta

Doces versos feitos de amargos venenos
Visão romantizada de um mundo imperfeito
Impossível crer em sua hipocrisia assumida
Falsidades que são por deveras sinceras
Expressando sentimentos de terríveis quimeras

Com suas dolorosas mentiras verídicas
Disfarçadas em odiosas poesias apaixonadas
Rogador intenso de tola fé desesperada
Autêntico admirador do puro desprezo
Na esperança de manter o sentimento aceso

Verdadeiro além da conta para ser real
Amor caro demais para ter qualquer valor
Transforma a realidade numa grande ilusão
Fazendo da distância uma sutil proximidade
Com buscas que almejam além do mar
Sem sequer conseguir sair do lugar

Impossível compreender seu coração
Uma alma desvairada e sem limites
Transitando entre os vivos e os fantasmas
Não é um homem, um imaturo pedante
Amargo demais para atrair com sua jovialidade
Infantil demais para encantar com sua maturidade

Fera traiçoeira acorrentada, mas perigosa
Como confiar se nele é possível sentir o cheiro
De seus medos e mais profundos anseios
Fascina com luz para esconder tamanha sombra
Não faz sentido, tão pouco se faz sentir
Tristonho menestrel mudo, habilidoso e prolixo
Tornando cada detalhe da vida num grande capricho

Sujo, desgastado pelo tempo
Desbastado nos golpes da vida
Pueril vagante, insensível vulnerável
Perdido em si mesmo, sem mapa ou tesouro
Frívolo emotivo de extravagante retrato
Mártir insano traidor de si mesmo
Declarando teatrais angústias a esmo

Rasgue e queime cada uma destas páginas

Jamais acredite em uma só gota de suas lágrimas
       

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A distância do tempo



Corroo
Corró
Corro
Até as pernas não mais aguentarem e os joelhos tremerem
Tropeço em pedaços de palavras não ditas e mal entendidas
Percebo que corri em círculos e estou novamente a teus pés
Círculos estes cada vez maiores, tentando ir cada vez mais longe
Mas com a força gravitacional de uma estrela tu me puxas de volta
Quem sabe um dia esteja longe o suficiente para me desprender

Naiade
Nada
Nado
Para a superfície, sem referencia em uma noite escura
Minhas braçadas intensas apenas fazem bolhas de ar
Sequer noto que me encontro indo cada vez mais fundo
Sendo lentamente arrastado por uma correnteza salgada
Mas talvez seja natural, o jeito como as coisas acontecem
Quem sabe essa mesma correnteza me leve a praia prometida

Vogo
Voia
Voo
Asas frenéticas se agitam com força no ar rarefeito das alturas
Vagando perdido na escuridão inebriante de uma noite fria
Sempre voltando em direção a tenra luz hipnotizante
Na busca pelas alturas sou atraído pelo calor conhecido
Mas tudo o que me faz é queimar e arder repetidamente
Quem sabe dessa vez eu não me perca e alcance a lua

Sem perceber me vejo seguindo fantasmas em uma caça inútil
Esperando respostas de um enigma eternamente incompleto
Tudo isso como forma de provação, em reação a tua descrença
Meu coração sofre de alzheimer, esquecendo do que já percebi
Mas quando consigo clarear a visão, corro, nado, voo, vago, fujo...
Quem sabe alcance a liberdade de minha prisão interna

Me afastei com o intuito de comprovar que sempre voltaria
Tua aproximação evidenciou o quanto nunca estiveste presente
Apenas me cerquei de ilusões, um castelo de belas expectativas
Acreditei que o que tu sentias era relativo ao quanto duvidavas
Mas fora um ledo engano, era apenas incredulidade, ceticismo
Quem sabe fosse apenas testes e desafios, provações insanas

Cada vez o sol de tuas lembranças nasce mais fraco em meu céu
Abraço a noite como a única verdade, da qual nunca me distanciei
Quanto mais escuro, mais bela é a vista das miúdas estrelas cintilantes
De repente todo o espaço, não é um espaço vazio, um vácuo interno
Sem "mas"... Nada mudou, as coisas só são como são, sem delírios
Eu sei que o tempo é sábio e tudo tende a mudar, constantemente

...não preciso sequer acreditar
      

domingo, 3 de novembro de 2013

Presa


Por um bom tempo trocam olhares
Até que os dois se encontrem próximos
O rapaz se encanta com tamanha beleza da fera
Enquanto o bicho observa-o atentamente
Ele chega a ter total controle em suas mãos
A leoa vê em seu treinador seu confiável dono
- Vinde a mim animal selvagem!
- Sim, mestre!!

O domador se encontra totalmente maravilhado
Fica sem palavras com o quão formosa é a criatura
Sequer se da conta do perigo que é domá-la
Tudo se encontra sob controle enquanto se entendem
Entretanto a felina o analisa a todo momento
Sua memória afiada grava cada pequena falha
- Venha maravilhosa criatura, sabes quem sou eu?
- Não há como esquecer, eu lembro do seu cheiro

Por alguns instantes se deixa levar pela confiança
Se esquece que o feroz ser anseia ser dominado
Sem isso todo o circo rui e o fim é inevitável
A leoa o julga trespassando-o com olhares
Ao tentar disfarçar não percebe que ela se guia pelo olfato
Ela percebe seus desejos mais profundos
Mesmo que ele tenha total controle sobre eles
O artista circense é sincero e a trata como igual
E isso não corresponde às necessidades da fera
Que parte em sua direção para atacá-lo
- Você é fraco, eu vejo seus defeitos!
- Por que fazes isto? Não sempre nos demos tão bem?

Uma patada da criatura lhe tira uma porção de sangue
Ele reage com a cadeira em mãos e estala o chicote
Não à faz mal algum, ainda assim a provoca ainda mais
Sua fúria intensa alimentada pela insegurança não cessa
Algo entre a posse e o medo a instiga a lutar
O jovem domador recua, saindo e fechando o gradil
- Assim não vai dar certo, olha como estou ferido!
- Você não é homem o bastante! Fuja, covarde!

Em um último ato de coragem, ele entra bruscamente
Ao ver a besta agora surpresa, recuando e confusa
Se aproxima vagarosamente abrindo os braços
Totalmente exposto e ficando cada vez mais perto
Joga o chicote para o lado e a encara no fundo dos olhos
- Eu estou aqui, não tenho medo!

- Pois deveria!
Em um salto o magnífico ser se posiciona a sua frente
E em uma mordida agressiva arranca-lhe a cabeça
     

       

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Memento Mori

...
Óbito
Lágrimas
Acidentais
Sem palavras
Um mal começo
Envenenamento
O sangrar dos egos
Nada lhe direi mais
Valores exacerbados
Imagens contrastantes
Julgamentos incessantes
Não é fácil viver na divisa
Onde se é um sábio para uns
Porém um ignorante para outro
Que é corajoso por suas escolhas e
Covarde pra quem não as compreende
O que tu dizes pesa demais, desbalanceia
Não me venha com essa de não se importar
Com opiniões alheias, ou impressões passadas
Ninguém é uma ilha e tu não deverias assim me julgar
Se lembre Catrina que para a morte não somos diferentes
No fim o que marca não são os erros distraídos ou atos falhos
Mas sim o ódio consciente de insultar, humilhar e nos outros pisar
"Mea culpa, fora um crime passional, não tive controle das emoções"
Não adianta, os pregos já ficaram marcados na cerca da alma
Tudo o que sobra é apenas um pedido de que se importe
Pelo menos que seja o suficiente para não continuar
Criando machucados, enfiando o dedo na ferida
No fim tudo isso fora desnecessário demais
Um capricho dos sentimentos infames
Reação perante seu orgulho ferido
A caveira range os seus dentes
Um incômodo sem cessar
De um fantasma passado
Uma cisma teimosa
Dor que demora
A passar
Afinal
...
     

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Tirocínio



Oh lanceiro que me penetra o peito!
Se pudesse lhe agradeceria pela lição
Sem demora gratificá-lo-ia pessoalmente
Por esta dolorida injúria a mim atirada
Mesmo que da pior maneira possível
Mas talvez se faça necessário assim o ser
Afinal é preciso morrer para renascer
Tu não apenas enfiaste o dedo na ferida
Tive o coração profundamente estocado
Porém tudo que escorrera da laceração
Foram lágrimas negras duma antiga infecção
Foste rude, é verdade, e não foi pouco
Contudo para um entendedor devotado
Apesar de torto, o significado é apreendido
Ainda que vindo dum pechoso dedo em riste
Oh lanceiro que me penetra o peito!
Se pudesse lhe agradeceria pela lição
Será que a sua fora aprendida?
     
  

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Epitáfio



Fim.

Conforme a pá entra em contato com o solo úmido, sinto o impacto percorrer meus braços até meus ombros, duros com a tensão do fardo que carrego. Demorei muito, mas duzentas e oitenta e seis linhas depois eu pude finalmente dizer ao ar tudo que precisava ser dito. Agora minha boca é como o terno de madeira encostado ao lado, sob a chuva pesada que o enxarca. Minhas palavras foram gravadas em um pergaminho feito de meu próprio coro, colocadas em uma garrafa e solta ao oceano profundo, afundando com o peso das emoções expressadas.

Cavar na chuva não é nem um pouco fácil, a terra fica úmida e pesada, e a lama me suja até os joelhos, assim como meus antebraços. Mas não posso mais esperar a torrente passar, certas coisas precisam ser feitas, não importando as circunstâncias. Verbos desnecessários encheram o esquife de madeira maciça, sentimentos lacrados que tornam poucos os sete pés habituais. O erro é cavar um buraco que não se consegue sair, deixando o túmulo exposto, e você escondido. Após todo esforço, subir não é fácil, mas é o preço que se paga por cavar uma fenda tão profunda. De lábios selados está no caixão um anjo caído. A costura em seus olhos e boca são para assegurar que não vaze as memórias que com ele foram seladas.

É Samhain e não existe momento melhor para lidar com os mortos. Será a última vez que esse espírito amaldiçoado andará pela terra, voltando para seu confinamento na badalada da meia noite. Após passar as correntes em volta do caixote me certifico de trancar bem os cadeados. Não vale a pena subestimar a força do que ali está guardado, já fizera grande estrago no passado. Por precaução até mesmo suas mãos e pés se encontram atados para que não haja como fugir; está sendo enterrado vivo, é verdade, mas jamais irá morrer. Só precisa se manter aprisionado a muitos metros abaixo da terra, que aos poucos se renovará sobre sua cabeça até que seja esquecido que ali houvera algum abjeto sequer.

Seu dom da imortalidade é sua maldição, e suas asas foram cortadas, muito antes de ser necessário sumir com sua existência, pelas mãos de outro de sua casta. Ao som da tempestade vou descendo a corda até que ele seja coberto pela água que já acumula no fundo. Boa parte do trabalho já foi, sequer posso sentir o suor escorrer no meio dessa tormenta. As gotas caem com força e são geladas; passam limpando a alma e carregando a sujeira acumulada em minha aura enlameada.

Agora só falta jogar terra por cima, e a pá parece pesar uma tonelada neste momento, talvez pelo cansaço de já ter cavado, entretanto uma vez começado o serviço vou até o fim. A cada porção de terra que colide com a tampa feita de magnólia, ecoa fortemente pelas paredes da cova uma vibração que faz minhas pernas tremerem. Mesmo na metade do caminho ainda é possível ouvir os murmúrios da alma penada que resvalam em meus tímpanos como um sussurro bem próximo, até ser silenciado pelas últimas esmurradas da pá contra a terra; que findam o esforço. Enfim uma lápide é posta, com apenas os dizeres "Adeus". Nada mais precisa ser dito e com o término da chuva se percebe um silêncio sepulcral, nem mesmo o vento ousa assoviar.
Ninguém visitará o lugar, e flor alguma será deixada em homenagem. Limpo o suor do rosto, me levanto e sigo para o caminho que já trilhava; rumo ao incerto.

Começo.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Damned



I'm cursed with this cureless feeling
It will hurt me until I can't laugh anymore
It is known that time cure everything
But my hourglass timing is different
Three days become three autumns
A simple memory changes to a tomb

My sadomasochistic heart searches for conflict
Asks for proves of faith and trust
With open chest I let everything come in
Leaving an irreparable damage
And I insist in haunting my problems
Even when there's no more solution
Making the sorrow worst and tearing me apart

Accursed from irreversible love
Heartache bigger than my chest
That takes my breath away
But I will never quit as long as I can feel
Having no fear from regretting what I've done

Because damned I am
Until receive a bless from the one
         

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Intemperança



Não são só gotas de palavras
Criamos uma tempestade descontrolada
Transborda o pedantismo e encharca as mágoas
Trovões de sua raiva, raios de ofensa
O que sobrou pode se pesar em onça
Gotas de sutís perfumes do passado
Agora fedem ao bafo na bocarra da fera
O galho é curto e as garras afiadas
Não resta muito do que já é pouco
Mas quem provoca é quem sai mais ferido
E quem se sente provocado com pouco?
Só machuca, e sem pudor, feroz
O medo vaga por entre os ramos
Assim na floresta mais um fatídico dia
Sangue escorre por entre raízes
Que insistem em não sair do lugar
Por mais forte que seja o tufão
Mas por mais que a árvore se fixe
Agora ela morre, por ali ficar
Após forçar até o limite, toda seiva foi tirada
Murcha e se desfaz na água da chuva
Qualquer chance de recomeço parece morta
Se decompõe toda a vida que transbordava
O fim é parte do ciclo
E por mais escura que seja a noite
Mesmo que o abismo do céu te torne menor
E as nuvens encubram as estrelas
O passado há de se renovar
Não sobrará vestígio das vidas que ali passaram
A natureza aos poucos voltará a brotar
Com o tempo certo, lírios hão de florescer
Fragrância nova irá pairar no ar fresco
E desse inverno a primavera irá me salvar
       

domingo, 20 de outubro de 2013

Soledade



Caminhada no deserto
Tumulto formado de cada fração
Significado vago carregado pelo vento
Céu pontuado por estrelas
Ofuscadas por nossa própria luz
Na brevidade distante de tudo que já foi
Contratempo da maquina, rodar da engrenagem fora do ritmo
Intangível meta que nunca devia ter sido traçada
Clepsidra que marca os tempos modernos, fluído
Mutável e inconstante são as próprias concepções dos rumos
E no ritmo da vibração dos outros, pressão
Barômetro oscilante, a cada dia mais sufocado
A força centrípeta da modernidade
Aumenta a gravidade sobre todos nós
E o movimento não para
ATM nos espalha e nos divide
Como areia soprada pelo vento
Procurando no céu o brilho de seus grãos
     

domingo, 13 de outubro de 2013

Desproporcional



No fim, parece que nosso amor
não era só diferente,
Desproporcional

Do começo ao fim
Não se atraias por mim tanto
quanto eu me encantei por você
E também não creste em mim,
tanto quanto acreditei em você
Não vias potencial em mim,
como eu percebia em você
Nunca confiaste em mim,
como contei com você
Jamais me perdoaste,
como eu te absolvi
Sequer conseguiste me compreender,
como eu por várias vezes te considerei
Não me enxergavas em ti,
como eu me via em você

Em circunstância alguma julguei,
como várias vezes me incriminaste
Nunca entendeste minha dor,
do jeito que eu tantas vezes me esforcei para tal
Jamais tiveste a mesma paciência com meus problemas,
como eu em todas as vezes que procuraste por consolo
Sequer se entregaste a mim,
como me cedi por você
Não quiseste me esperar,
como por ti aguardei


Em nenhum momento tiveste fé em mim,
como ainda tenho em você...
    

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Odiosa Natureza Humana



Maldito seja,
Nossas posições poderiam estar facilmente trocadas
Afinal somos apenas organismos reativos ao habitat
Maldita sensação estasiante que nos faz ver o invisível
O amor só é acreditado enquanto sentido
O mundo só é real enquanto o percebemos
Malditos processos eletroquímicos
Conexões sinápticas que mudam tudo
Que criam o nada... que não existe
Maldita ausência no que nunca esteve presente
Dependência criada pela sobrevivência
Um necessidade de conexão... desnecessária
Maldito o jogo de poderes da vida
Ninguém quer ficar por baixo, dever de dominar
A moral anti natural nos fala para doar, ceder
Maldito seja o orgulho e um ego ferido
Lúcifer criador da soberba
Útil geradora de conflitos... inúteis
Maldito seja, humano
Escravo do conveniente, do interesse
No fim temos cérebros egoístas e corações prostitutos
Malditos sejamos!
                     

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Equilibrista



Andando na corda bamba 
sigo de um ponto a outro
Nova fase, 
novo caminho
Me equilibro
Olhar para trás já me faz oscilar
Virar e voltar seria difícil
Eu poderia,
mas não há nada o que fazer lá
A passagem foi fechada

À minha frente, apenas a névoa
Não sei para onde vou, 
porém não tenho escolha
Escolhi um caminho difícil
O vento é forte
A altura assusta e a neblina confunde
A corda segue inclinando-se para o alto
Eu escolhi assim
Cada passo se torna mais difícil
A vista fará valer a pena

Sinto a corda por entre os dedos do pé
O peso da vara de equilíbrio me lembra a todos eles
Os que me mantêm voltando ao centro
A cada vaivém
O eterno retorno
E você magicamente 
está sempre lá
Mesmo não estando

É sempre um perigo
Cair
No abismo da ilusão
Já cai uma vez
E você
Tão presente
Com sua voz
Vinda do eco
Me faz querer
Despencar
Em sua direção

Mas você não está lá
É só o eco

Será?

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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Solve et Coagula



A verdadeira alquimia consiste em transformar lágrimas em sorrisos, negativismo em positividade. Tudo está ai, basta rearranjar; dissolver e recompor.

"Quando a dor de não estar vivendo for maior que o medo da mudança, a pessoa muda" - Sigmund Freud

Se você não consegue nem mudar a si mesmo, o que dirá tornar outros metais em ouro. A pedra filosofal é a verdadeira vontade. Você pode encontrá-la para fora ou para dentro, acima como abaixo, os dois caminhos se encontram. Mas tem que buscar! Para fazer dela artifício de sua felicidade, como mantenedora; pois ela não é o final. É o caminho. Um caminho do qual você precisa fazer a manutenção do movimento, se não você se desvia.

"Viver é como andar de bicicleta: É preciso estar em constante movimento para manter o equilíbrio" - Albert Einstein

Recuperar o equilíbrio pode ser desconfortável e pode demorar, mas é melhor que seguir se arrastando. Acreditar nas próprias potências, ou blefar com o mundo. Fake it until you make it. Você é o seu personagem, mesmo fazendo boas escolhas nem sempre os dados favorecem. Mas não pode parar de jogar. Não pode se esconder. Não porque isso não é viver, seria arrogância demais definir isso. Vida ou sobrevida, cada qual escolhe o que quer. Mas se não aprender as regras do jogo que acontece fora e por dentro, você continuará no ciclo dos mesmos erros.
A roda do dharma.

"Para amar é preciso ser vulnerável" - CS Lewis

Podem apontar para a lua e você olhar para dedo, você pode até admirar a lua e compreendê-la. Mas para alcançá-la é uma escalada. Muitos perguntam por ajuda ou atalhos, quais os melhores caminhos que os mestres podem ensinar. Por que não jogam uma escada ou uma corda aqueles que já estão lá em cima?
Como poderiam? Eles subiram sem ela.
Existem coisas que ninguém pode fazer por você. Escolhas. As quais todos insistem em achar algozes de seus azares, um culpado que influenciou ou alguém que deveria ter ajudado. Mesmo nas situações mais adversas você sempre tem escolhas! Mesmo que seja não escolher.

"A dor é inevitável, o sofrimento é opcional" - Carlos Drummond de Andrade

O que arde cura, mas nem tudo que cura arde. Dissolver no pensamento e recompor no sentimento. Após se desfazer e se analisar, pedaço por pedaço vem o trabalho de construir. De nada adianta, no fim, se entender sem ser capaz o suficiente de se reconstruir. Despertar a fênix interior sem medo de se queimar.

"O que você sabe não tem valor; o valor está no que você faz com o que sabe." - Bruce Lee

Ilumin.ação

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quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Fragmentos D'Alma



"No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus."

Passos lentos ecoam pela adoecida casa, desgastada pelo tempo e já cansada de assim ser. Passos lentos levados por joelhos frágeis e pés calejados de contato com o mundo. Um senhor, beirando os três dígitos, caminha em direção ao seu aposento mais vívido e confortável, a sala de livros. Ele poderia chamar de biblioteca, mas prefere deixá-la mais aconchegante e humilde.

Dedos enrugados cobertos por uma fina seda viva se arrasta pelo nariz, já protuberante pela idade, empurrando a fina haste metálica de um pequeno óculos. Com a firmeza de seus ossos, e o que lhe sobra de força nos músculos, ele posiciona uma antiga cadeira de madeira escura, trabalhada em entalhes curvos, para o centro da sala. Não pega um livro sequer. Apenas senta-se e fica a observar tudo o que já leu; Tudo o que um dia soube e tudo no que um dia acreditou.

Divagação. Com seus membros cada dia mais enferrujados e seus órgãos sensoriais gastos, cada vez menos sensíveis, não lhe sobra muita coisa senão pensar. Em tudo que fez e deixou de fazer; o que poderia ter feito e o que quase aconteceu. De fato nem mesmo as probabilidades lhe atraem mais. Com o cenho comprimido, coçando os delicados fios brancos que lhe decoram a cabeça ele se concentra na admiração do todo.

Hipnotizado pela vista da colorida, mesmo que desbotada, combinação de barras verticais, se deixa levar pelos devaneios mais insanos. Seus olhos azuis vislumbram então uma ideia, como um relampejo em sua frente. Seria um raio na janela?

Sem saber se fora sua surdez ou desatenção que o fizera não perceber o barulho, ele se vira na cadeira e repara na janela aberta. Uma suave brisa de outono sopra agitando as cortinas translúcidas. Não está chovendo. Talvez não tenha sido um raio. Talvez...

O ancião então ajeita sua longa barba branca e deposita seu cotovelo ossudo no braço acolchoado da cadeira, apoiando em seguida sua cabeça preguiçosa. Então se põe a pensar:

"Afinal, o que posso dizer sobre a realidade; depois de ver coisas impossíveis acontecerem, e de ver o lógico ser o mais improvável?"

Ainda mais agora, com suas noções distorcidas pelos ciclos, não saberia diferenciar o irreal do real. Cada um desses livros amontoados, sobrepostos e encostados, são noções tão distintas da totalidade. Dentre os mais sinceros estão os de fantasia e ficção, que deixam transparecer os maiores anseios da alma humana. Desde garoto nunca subestimou o poder das palavras, e agora compreende melhor o que jamais concluíra depois de tantos versos, capítulos e compêndios.

Eis que pela janela entra um gélido sopro. Um Vento instigado pela Curiosidade se aconchega em seu colo. E sem perceber, o sábio senhor é pego por um sussurro:

As palavras possuem alma.

Não apenas isso - pensa ele brevemente - elas são parte da alma humana. Cada significado e sentido é uma fagulha da nossa incompreensão com nós mesmos.

Sábios monges e o voto de silêncio, sábios animais e homens das cavernas.

Não criamos algo que já não existisse em nós mesmos, apenas nos dividimos, nos dilaceramos. E aos poucos fomos nos perdendo, sem saber o todo que nos cabe, e o quanto cada pequeno detalhe que não compreendemos nos faz falta.

Cada palavra, da mais sofisticada até a mais genérica; até mesmo as que discordamos e odiamos, são partes de nós. E assim ele coletara, uma por uma, para então finalmente encontrar de onde vieram.

As palavras possuem vida.

Elas nascem, crescem, se multiplicam, transformam e até mesmo morrem.

Sua consciência experiencia uma tempestade de ligações. Uma Epifania aos poucos o desperta. A trama da existência inteira parece se contorcer. Ele sente seu corpo derreter ao observar cada palavra que um dia já lera fugindo dos livros, cada uma com sua distinta forma física. O Vento assustado então foge pela janela, rumando em busca de algo pelo céu noturno.

Em um galho, próximo ao local está a Curiosidade pasma com tudo que despertara. Seus grandes olhos de felino e suas orelhas de raposa tremem de excitação. Excitação essa cortada por um Vento gélido, que lhe dá calafrios. Um pequeno inseto voa a sua volta sem parar, zumbindo em sua orelha. É a Culpa:

- O que você fez?
- Não sei ainda. Estou louco para ver o resultado.

O Vento irritado percebe como se deixou levar por uma das criaturas menos confiáveis, passando feito um tufão, arrastando as folhas das árvores. Voando para bem longe dali.

- Interessante, não? - Pergunta a pequena criatura de dedos finos, com um sorriso discreto na boca, de quem não consegue conter o entusiasmo.

Mexendo em suas pequeninas chaves que carrega em sua cintura, a criatura foge da bronca e vai em direção a casa - Mal posso imaginar tudo o que pode acontecer a partir de então. - Sua caminhada é interrompida abruptamente por um muro cheio de portas e gavetas. Estática, a Curiosidade decide observar seu obstáculo, e sem exitar tenta uma de suas chaves finas e compridas na fechadura principal. Se surpreende novamente ao ver um manto liquido se projetar do muro formando uma silhueta humana de capuz e trajes de monge. Em sua mão o misterioso ser traz uma ânfora, com uma boca em relevo, a qual sua outra mão silencia.

- O que fizestes criatura tola?
- Segredo? O que fazes aqui? Por que me impedes? Não faço nada além de meu intento primordial.
- Basta! Percebes o que está acontecendo? Ele está alterando toda a trama do mundo, interna e externa. Não posso falar mais que isso. Enquanto não resolveres este problema, terás a Culpa em seu fardo.

Cavando as costas da Curiosidade com o intuito de se esconder e se enterrar para se esquecer, a Culpa encontra o Desespero emergindo e se arrastando. Preocupado e inseguro, ele decide correr atrás de qualquer um que pudesse prover algum tipo de ajuda, deixando a Curiosidade a se coçar.

Após sair das costas da Curiosidade, o Desespero corre perdido gritando por ajuda. Suas pernas tortas cheias de pequenos cortes tremem e seus joelhos ossudos se chocam. Em um dos ombros está a Ansiedade, um pequeno mamífero respirando tão rápido que sua respiração solta um barulho incômodo. A irritante criatura de olhos esbugalhados arrasta suas garras na pele de seu hospedeiro de forma inquietante. Do outro lado vemos a Preocupação que intercala entre cada "e se" uma bicada na cabeça do pobre Desespero.
Caído no chão, o disforme ser olha para frente e enxerga um pé de mármore. Levanta seus olhos e observa uma fria imagem, a lhe fitar de cima para baixo.

- O que está acontecendo? Nada está fazendo sentido.
- Eu, não... Eu não sei. A Curiosidade. Ela fez algo. A existência está em choque. Epifania toma conta dos pensamentos. O velho está se desfazendo. - balbucia com as palavras se atropelando o Desespero.

A Razão então demonstra interesse. Seu senso lógico agora monta o quebra cabeça e ela compreende o monstro, que agora a enxerga melhor: Figura de mármore e rosto neutro, seu cabelo retilineamente escorrido para trás. Em suas mãos porta um escudo e uma lança. Uma coruja lhe sussurra algo no ouvido e ela então afirma categoricamente:

- Tenho a solução! - Com um esfregar de mãos, razão cria uma borboleta azul e então a assopra. A borboleta segue em direção a casa, deixando um rastro luminoso de pequenos pulsos elétricos.

De volta a casa observamos como tudo começa a se desfazer em um redemoinho de estilhaços e farpas. Na antiga e detalhadamente entalhada cadeira, encontramos apenas um líquido escorrendo e se esparramando no chão. Logo a frente está a Epifania, de corpo belo e curvilíneo, mas com patas de bode e grandes chifres curvados para trás. Em sua mão está um cérebro com as vértebras se enroscando em seu braço. Ela saboreia com prazer a vibração que aquele órgão emana.

De súbito a porta é escancarada por outra beldade. De rosto mais severo com olhar concentrado e mãos intimadoras a apontar para entidade demoníaca.

- Chega desta libertinagem! Dê-me este cérebro! Pare com essa loucura!
- Ele que me chamou. Ele me queria aqui. Você nada pode fazer.

Uma rajada de vento agita as vestes da Sanidade. O que não acontece com seu cabelo devidamente preso em um coque. Ela sabe que nesse momento nada pode fazer. Está presa a lógica da sagaz Epifania, mas se vê surpreendida por uma chance de virar o jogo. Uma borboleta adentrando pela janela, zanza através da sala e para no encosto da cadeira.

Os ventos se agitam e com um turbilhão de fagulhas eletroquímicas, o pequeno inseto se transforma em uma jovem donzela de feições delicadas. Em suas costas ainda preserva enormes asas de borboleta.

Apesar de delicada aparência, sua cara demonstra uma firmeza de decisão. Ela encara suas companheiras de sala e chama a Sanidade mais para perto. Com um giz, desenha em volta da cadeira um quadrado equilátero, preenchido por um pentagrama com símbolos e hieroglifos jamais antes vistos.

- Prepare-se.

Epifania se vê com a Dúvida a lhe incomodar. Uma garotinha de cabelos cacheados, que não para de perturbá-la. Estática, não sabe o que fazer. Com a distração nem percebe que o cérebro agora se encontra a flutuar na cadeira com a coluna verticalmente alinhada com a base quase a tocar o acento, e o lobo occipital próximo ao encosto.

A Sanidade começa a se transformar, tornando sua pele brilhosa e reflexiva, se expandindo e se afinando. A Mente, batendo suas asas azuis, então começa a entoar um encantamento. Com seus braços arqueados e dedos bem abertos envolvendo a massa encefálica, ela decide rearranjar o que foi feito e mudar a noção recém concebida.

- Intelecto desfeito, corpo inato, personalidade rompida e ideias esquecidas. Quem vos fala é a Mente! É a alma! E lhes dou uma ordem. Recomponham-se. Se refaçam. O que um dia fora agora não é mais, e o que soubera sequer existiu. Invoco e rogo que me ajude. Ilusão!

O que se vê é algo próximo ao caos. Uma grande mistura de cores, cheiros, tatos, sons e sabores explodem, quase perdendo o controle. Tentáculos surgem e aos poucos vão se agarrando a cadeira, até que a Mente entoe:

- Para definir o mundo, lapidar as possibilidades, reescrever a verdade. Com a temperança de um deus, reconstruo aqui a maior das ilusões: A Realidade!

A janela bate gelando o sangue do ancião com o susto. Ele havia caído no sono. Já estava tarde e esfriava cada vez mais. Decidiu que era melhor fechar a janela e ir para o quarto, estava frio e não queria pegar um resfriado. Afinal de contas, apesar do cansaço de uma vida longa, ele queria, mais que tudo, viver. Sem saber de onde vinha esse ânimo todo, ele viu um último sopro sair pela fresta da janela ao fechar. Um vento se projetou acariciando seu rosto, como um suave beijo de boa noite. Era hora de deixar os livros de lado - pensou ele.

- Irei aproveitar a manhã seguinte. Quem sabe viajar. Já faz tanto tempo...

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